“Da embriaguez da certeza à revelação da ilusão - crónica de um confinamento.”
Olhares, Pensamentos, Emoções
O meu período de “quarentena” não está a ser vivido como tal, uma vez que continuo a trabalhar e a conviver no mesmo espaço com outras pessoas.
Desde declarada a dita pandemia, tem sido um pouco confuso o meu estado mental e emocional (o físico nem o menciono pois como já dizia a canção, “…o corpo é que paga”).
A fase inicial de surpresa e estupefação com o que estava a acontecer, deu lugar gradualmente a uma ligeira histeria e fobia em relação a qualquer contágio.
Filtrar o input de notícias sobre o assunto acabou por se tornar essencial para reequilibrar coração e mente. Confesso que a paranoia aconteceu. O supermercado, a fila na farmácia, o colega no trabalho que parava para conversar mesmo atrás das minhas costas e por aí fora.
Também tive sentimentos contrários à confusão inicial. As ruas quase desertas desenhavam um cenário surreal. Sentia uma espécie de alívio com a ausência de ruído e a estranha serenidade que se instalou em todos os espaços exteriores. Os pássaros faziam-se ouvir e a ausência de pessoas sabia-me bem.
Uma ou outra vez procurei refúgios que sabia serem pouco conhecidos. Poder sentar numa pedra, olhar o céu e as nuvens bem acima da cidade e respirar! Agradável sensação de abrandamento. Era como se a natureza estivesse a restabelecer a ordem natural da vida.
Mas com todo este silêncio também veio a preocupação com os filhos, dois deles já não vivem comigo, são homens. Quero protegê-los, mas isso é algo que não controlo. Aliás, nada pode ser controlado. E fica aquela tristeza bem lá no fundo do coração. O receio da perda que conscientemente recuso deixar acontecer, mas que inevitavelmente acontece. Penso neles, na filha ainda adolescente e em todas as pessoas que de uma forma ou outra se relacionam comigo e convenço-me de que nada de grave acontecerá.
Decido acreditar que construo a minha realidade. Esta convicção, ainda que cedendo por vezes à incerteza, ajuda-me a continuar.
Mas o primeiro e mais devastador impacto, foi-me ver privada de contactar a minha avó.
Já não tenho mãe e ela é o único familiar vivo com quem conservo aquela relação especial de amor, colo e mimo.
A minha avó materna. A situação em que ela se encontra faz-me refletir e ao mesmo tempo também questionar.
Para contextualizar, trata-se de uma história de amor. Um laço e um apego meu. Houve quem lhe chamasse carente ou infantil. Eu chamo-lhe especial.
Vivi a sua gradual degradação física e mental. Fui neta e cuidadora durante muitos anos. Cada mudança drástica do seu estado era como um novo luto. Vivi vários lutos por ela. Foram processos dolorosos. Já tinha vivido outros lutos anteriormente. No seu caso, acabava por aceitar a nova condição, a mudança. Fui-me desapegando do que era certo para mim e habituando-me a cada nova realidade (dela/nossa).
Será este confinamento um novo luto? Sem dúvida. As habituais visitas ao lar estão suspensas e ela lá, literalmente confinada numa cama, num quarto, a olhar para quatro paredes.
Aquilo ao que eu chamava “dar-lhe o seu momento de qualidade de vida” acabou. O seu sorriso quando me via, o chocolate que lhe levava e a deixava num êxtase de felicidade, as velhas músicas da Beatriz Costa e da Amália que lhe devolviam o brilho no olhar.
Ela perdera a capacidade de falar, mas nós comunicávamos. As almas não precisam falar. Eu sentia o seu amor e ela o meu. Tenho saudades do toque da minha mão no seu rosto, de lhe acariciar o cabelo, de lhe segurar a mão. Recordo a terna expressão no rosto quando eu lho acariciava. Era o poder do toque. Saía de lá com o coração cheio. Sabia-a feliz e assim também me sentia. Senti revolta com o isolamento que lhe foi imposto. Compreendo as circunstâncias claro, mas o meu apego egoísta diz-me que não aceito uma eventual perda sem despedida.
Agora, com o passar das muitas semanas, dou por mim a lembrar que com a minha mãe não houve despedida.
Com o pai dos meus filhos não houve despedida.
Tantas outras pessoas ligadas a mim e que partiram sem despedida.
Então decido construir novamente a minha realidade e acabo aceitando o que quer que aconteça. Ela está no seu “mundo cor-de-rosa” e eu imagino-o como um sítio bom.
Acredito que de algum modo ela sente o meu amor e eu sinto o dela. E é tudo. Aceito tudo. E não se trata de resignação, mas sim de aceitação consciente. Humildade.
Acendo uma vela para manter a chama viva e lembro uma frase que aprendi e interiorizei, “eu não sou o corpo, eu também não sou a mente”. Esta experiência e esta espécie de reflexão faz-me saber que essa frase é a derradeira realidade.
Não existe “o meu corpo” ou a “minha mente”, e o mesmo acontece com a minha avó.
Ambas somos mais do que isso. Ela existe em mim e eu existo nela. Somos uma, sendo o nosso amor o elemento comum.
Dou por mim a pensar que esta ideia se aplica a todos os seres. Não temos consciência disso pois apenas o sentimos quando nos focamos apenas em determinadas pessoas.
Em relação ao yoga e à sua prática: complicado e estranho. Não me reconheci. Numa fase inicial sentia-me estagnada, apática, sem entender o que se passava comigo. Entrei numa espécie de autossabotagem. Adaptar-me a esta nova realidade do yoga foi complicado (está a ser complicado). Pensei ser apenas uma fase. Ela vai e vem. Entendo que faz parte e que tudo é natural. É o meu processo apenas. Uma espécie de luto também. Não tem porque ser igual ao dos outros. Somos todos milagrosamente únicos.
Sinto-me bem a escrever. É como se cada palavra que escrevo, cada pensamento que surge me libertasse. O peito sente, a mente organiza, os dedos comunicam. Este deixar fluir sem destino evoca-me um rio. As águas correm livres. Fluem como estas palavras escritas.
Escrevi os parágrafos anteriores ontem. Hoje retomo e o ânimo mudou. Acontecem coisas que interferem. Sinto-me paralisada. Irrito-me porque permito que isso aconteça. Loucura total: sinto-me mal porque me sinto mal. Quero o meu retiro! Não me entendo. E não se trata de medo. Estar no limite, na corda bamba, sempre me estimulou a andar para a frente, a sair da letargia. Mas “Isto” é diferente. Sei que tudo tem o seu tempo. Assim a vida me ensinou. Sei que vai chegar o momento de mudar novamente.
Sempre vivi as emoções muito intensamente. E isso é bom. Gosto de ser assim. Mas na mesma medida em que me faz ver a maravilha e a cor da vida, também na mesma medida me revela o oposto. E são emoções muito profundas, viscerais.
Quando estou em yoga, estou serena. Consigo conciliar tudo em equilíbrio. Em yoga sinto-me em casa…em yoga sinto-me em casa…yep! É mesmo isso! Yoga, yoga, yoga. Ir para o chão, libertar o corpo, libertar a mente, ser eu própria.
Talvez tudo o que acima descrevi retrate apenas a minha adaptação à mudança. Eu que sempre fui tão moldável e camaleónica. Sempre abracei o mundo, a complexidade da vida e todos os seus ciclos. Sempre sem medo, como se de uma aventura se tratasse. E agora estou diferente, mudei. Talvez fossem apenas “cascas” que cresceram sobre mim e ocultaram a minha essência.
Ok, escrever neste preciso momento está a ser uma verdadeira catarse. Obrigada Marco pelo tpc. Isto está a ser terapêutico. Vou tratar de vida agora. Até às próximas linhas. Até já.
Olá, de novo. Hoje é já dia 30. Continuo a deixar que algumas circunstâncias me afetem e, portanto, não me sinto bem. Deprimida. Apenas saber que tinha de voltar a esta escrita me motivou. Mas estou aqui e sinto que não há mais palavras. Não te vou impor este meu pequeno drama que à medida que o descrevo, se vai tornando cada vez mais diminuto e diria até ridículo. Sem sentido. Este drama existe apenas na minha mente. Preciso de o “varrer”. Recuperar a minha sanidade mental.
No fundo as coisas são bem simples e também simples de resolver: abandono o emprego ao que lhe costumo chamar “a minha morte cerebral lenta”, dedico-me a atividades que me dão propósito de vida e deixo para trás lugares, pessoas e situações que me fazem sentir mal.
Esse dia vai chegar. Eu sei. Não pode ser de outro modo! Até lá, como tu bem o dizes, "focar no agora", pois no aqui e agora é que tudo acontece. Então é fazer acontecer. E acabei de o fazer ao escrever estas linhas!
Quanto ao vírus, nada a dizer. Faz parte da natureza. Faz parte de tudo.
Que toda esta situação nos sirva para despertar da embriaguez das certezas.
Que a realidade além de subjetiva é também uma ilusão. E então o que nos resta? A resposta talvez esteja nas coisas mais simples e belas. Ou até talvez nem tenhamos de procurar respostas.
Sabes uma coisa?... os breves momentos que passei a escrever este texto foram o meu retiro.
Obrigada.
(Reflexão escrita proposta pelo meu professor e mentor Marco Peralta durante a pandemia Covid19)
Om Shanti